A ideia

Diante da tela do computador, nos sentíamos parte da plateia. Em cima de um palco, uma mulher negra e gorda usa um vestido estampado por bailarinas negras e segura uma folha de papel enquanto declama versos sobre a própria história. A historiadora e rapper Preta-Rara traz delicadeza ao falar de vivências de dor e pontua cada uma de suas frases com a cortante sentença: “...Porque a senzala moderna é o quartinho da empregada”.

A palestra realizada no formato ‘TED’, que condensa ideias no formato audiovisual entre 10 e 20 minutos e possui linguagem acessível a todos os públicos, independente da área de conhecimento, permaneceu nos pensamentos de Julio Cesar Lyra e Nathália Braga, estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Após virar até ‘pauta’ de sonhos, o TEDx “Eu Empregada Doméstica” de Joyce Fernandes deu origem a reportagem 'Empregadas domésticas em perspectiva racial'.


Através da narrativa em primeira pessoa das vivências de empregadas domésticas negras, a matéria apresenta os desafios e conquistas do trabalho doméstico quase 130 anos após a lei de abolição da escravatura no Brasil. Poucos anos após a ‘PEC das Domésticas’, emenda constitucional aprovada em 2013 que elevou a discussão sobre as condições da profissão a nível nacional, o protagonismo de fala das trabalhadoras ainda é escasso, mesmo correspondendo a quase 20% da população feminina economicamente ativa brasileira, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

A partir da apresentação da ideia de reportagem nas redes sociais, algumas empregadas do Rio de Janeiro se disponibilizaram e outras foram convidadas por parentes. Ao longo de um mês, registramos em formato audiovisual um encontro com cada participante, preferencialmente em seus lares, acumulando quase oito horas de conteúdo. Estivemos em Copacabana, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ e em Belford Roxo, na Baixada Fluminense:

Dona Penha, 70, Copacabana           Elizabeth, 42, Duque de Caxias          Lucia, 58, Belford Roxo

História

Três séculos de regime escravagista. Diante deles, 129 anos mostram a juventude do Brasil pós-abolição. A estrutura construída nessa etapa histórica reflete e produz as relações das pessoas negras com a sociedade de um modo geral, e, portanto, com o trabalho. Herança da antiga 'casa grande', o serviço doméstico é uma das profissões que mais se destaca dentro do contexto.

Para onde foram os negros e negras após tanto tempo de relação de posse das propriedades humanas pelos senhores? “No final do século do século XIX o trabalho doméstico passa a figurar como um meio de sobrevivência, com o fim da escravidão o mundo do trabalho passa a ter outras configurações do ponto de vista jurídico, os que eram escravos agora estão libertos, a incorporação dessa mão-de-obra liberta ao mundo do trabalho se deu majoritariamente pelo trabalho doméstico”, afirma a historiadora Bergman de Paula Pereira, especialista em gênero e raça.

No Brasil, o trabalho doméstico é profissão de 5,9 milhões de mulheres. A Pesquisa Mensal de Emprego (PME), instrumento de produção de indicadores para análise conjuntural do mercado de trabalho nas Regiões Metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), aponta que, no ano de 2008, nessas localidades, 8,1% da população era composta por trabalhadores domésticos. Desse grupo, 94,3% eram mulheres e 61,8% eram negros.

O traço estrutural aparece também na informalidade com que é vista a profissão, considerando-se a instabilidade e insegurança dos direitos trabalhistas tardiamente conquistados desses profissionais, como a emenda constitucional de 2014, conhecida como ‘PEC das Domésticas’. No texto da emenda estão consolidados benefícios como seguro desemprego e indenização para demissões por justa causa, novidades para a categoria. Com a conquista de quase o dobro de direitos, os empregados domésticos atingem benefícios que todos os trabalhadores de outras áreas já possuíam.

Fontes: IPEA e PNAD

Participantes


Dona Penha (foto) começou a trabalhar aos 8 anos. Nascida no Espírito Santo, veio com os pais e avó materna viver no Rio de Janeiro. Fez seu primeiro serviçodoméstico na casa de uma professora, em Engenheiro Pedreira, onde morava, na Baixada Fluminense. Trabalhou lá até os 15, quando foi contratada para o primeiro emprego no qual teve de morar, em Madureira.

A realidade de Penha não é incomum. Muitas das empregadas domésticas adultas começaram o serviço ainda na infância. Apesar da proibição, o fato ainda está presente nos dias atuais. O trabalho infantil representava 3,9% do serviço doméstico brasileiro em 2011, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE).

Depois de algumas trocas de emprego, Dona Penha, que disse sempre ter trabalhado muitos anos nas mesmas casas, entrou para a família que fez da sua carreira algo peculiar. Em 1971, iniciou prestação de serviços na casa de onde só saiu quando se casou com o ex-patrão. Sem acesso aos direitos trabalhistas e com a chegada da terceira idade de Penha, a neta do patrão, que ela conheceu quando ainda era bebê, propôs que ela se casasse com o senhor de 91 anos, a fim de garantir direitos após a aposentadoria. “Eu sou da família, aceitei”. Dona Penha, que a princípio julgou ser uma brincadeira, se casou com Dal em 2008, e esteve casada até a morte dele, em 2016.

“Não acontecia nada entre a gente”, afirmou Penha, que disse considera-lo como um pai. O casamento, segundo ela, foi somente a maneira encontrada pela família de retribuir os anos de serviço dando o mínimo de dignidade à funcionária em sua aposentadoria. 1 ano após a morte do marido, Penha disse que ainda frequenta a casa da família, agora como viúva do patriarca.

Atualmente, Penha mora em Copacabana e trabalha como cozinheira e passeadora de cães. Com a
pensão do marido e o dinheiro que ganha com seu trabalho, ela afirmou que “dá pra viver bem e ainda ajudar os outros”.

Durante os muitos anos como empregada doméstica, Penha disse ter sofrido assédio sexual por duas vezes, queixa de muitas profissionais da área, como Lúcia, que foi sofreu tentativa de assédio em no mínimo duas casas. “Quando cheguei o jardineiro já disse logo: ‘o patrão não pode ver uma mulata’”, contou a empregada de 58 anos sobre uma casa onde ficou durante poucos dias.


Lúcia saiu de casa para trabalhar aos 18 anos. Seu primeiro emprego doméstico, na Barra da Tijuca, foi também seu primeiro contato com o mundo, antes disso nunca tinha saído de Belford Roxo, onde nasceu e mora até hoje. “Naquela época ou você casava ou se tornava empregada doméstica”, lembrou Lúcia, que resolveu trabalhar em busca de independência.

“Nunca fui desrespeitada”, afirmou a empregada, que trabalha há 35 anos na mesma casa. Lúcia disse que, antes de chegar no atual emprego, nunca se obrigou a ficar em nenhuma casa que não gostasse, e reconhece que não ser uma chefe de família e mãe, na época, era o que permitia que ela tivesse maior liberdade de escolha. “Eu não tinha filhos para criar em casa, podia fazer isso”, contou.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2006, 64% dos trabalhadores domésticos não haviam completado o ensino fundamental. A empregada doméstica Elizabeth, de 42 anos, foi retirada da escola quando estava na 5ª série. “Para o meu avô, se você já sabia ler e escrever, não precisava mais estudar.”, contou Elizabeth.

Ainda adolescente, Elizabeth começou a trabalhar em uma casa no bairro de Ipanema. “Eu me lembro daquele quarto onde eu tinha que ficar a semana toda. Eu não queria ficar e ao mesmo tempo não podia voltar. Tinha que trabalhar em casa para ajudar minha mãe e permitir que meus irmãos menores tivessem o mínimo de possibilidades”, lembrou.

Mãe de 3 filhos e moradora de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Elizabeth se formou em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/RJ. De toda a sua família, ela foi a única a ingressar no ensino superior.

“Apesar da vida toda sempre ter trabalhado como empregada doméstica, essa nunca foi uma relação tranquila e aceitável pra mim(...) Não gosto da desvalorização que tem esse trabalho”, ressaltou Elizabeth, que voltou a estudar aos 30 anos. No Colégio Santo Inácio, onde fez a conclusão dos estudos no Ensino de Jovens e Adultos, ela viu na equipe de assistentes sociais a inspiração para sua carreira.

Atualmente, Elizabeth pretende sair do serviço doméstico e encontrar um emprego na área de Serviço Social, mas afirmou que não pode desmerecer sua trajetória. “Foi o que permitiu que eu pudesse dar esse avanço que foi ter curso superior e enquanto estudava manter meus filhos”, apontou.

Lúcias, Penhas e Elizabetes. Muitas são as mulheres que fazem dos bastidores das casas suas histórias. Muitas vezes apagadas, outras sendo “quase da família”, enquanto em alguns países a contratação de trabalhadores domésticos é cada vez mais rara devido ao custo do investimento, no Brasil as relações de trabalho permanecem abusivas.

Para Elizabeth, além do processo de aquisição dos direitos trabalhistas, somente o acesso à informação e consciência do local ocupado na sociedade podem trazer as críticas necessárias ao fazer profissional das empregadas domésticas. Ela acredita que o que ainda coloca mulheres negras na posição de subalternidade profissional é a falta de inserção em outras áreas e se mostra positiva com relação ao futuro da profissão: “Se há 30 anos o emprego doméstico era muito pior, daqui a 30 será melhor”, disse.

Autores


Julio Cesar Lyra tem 20 anos e é estudante de Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ


Nathália Braga tem 20 anos e é estudante de Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ

REFERÊNCIAS

https://jus.com.br/artigos/empregado-domestico

A discriminação sociojurídica ao emprego doméstico na sociedade brasileira contemporânea: Uma projeção do passado colonial 

Alexandra Loras - O trabalho doméstico e a perpetuação da escravidão: 

Histórico do emprego doméstico e correlação com a escravidão e trabalho feminino:

Senhores e Escravos, Patrões e Desempregados: Heranças escravagistas em questão no momento em que se regulamenta o trabalho doméstico: 

Trabalho doméstico, consumo e interseccionalidade:possibilidades de agência na trajetória de uma (ex)empregada doméstica: 

Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores:

De escravas a empregadas domésticas - A dimensão social e o "lugar" das mulheres negras no pós- abolição: 

Racismo contra empregadas domésticas no Brasil é denunciado na CIDH: